i -
E Raquitim era só mais um dos pirralhos aglomerados no Quadrãozão do aglomerado. No par ou ímpar, tirados, quando tirados, por último. E deixados pra lá, na banheira: caso a bola batesse primeiro neles, antes de ir para "o funnndos das redes".
Gol!
E ai deles se atrapalhassem a finura do grande lance, "o momento maior do futebol"!... Cocão, cocão e cocão. Na próxima cê fica de fora, seu Fei Que Dói, Filhote de Cruz Credo!
ii -
Não era pra acontecer, mas... aconteceu: a bola melou. E Raquitim, foi muito além do esperado: deu um corte seco no beque, e depois guardou a gorduchinha nas redes. Euforia geral no Quadrãozão! É isso aí, Moleque e muito tapão na cabeça!... E foi assim que a lenda começou.
iii -
A história bem que poderia ser escrita com os acertos da concordância Verbo-nominal. E, depois, rememorada na voz do mais famoso de Os Comentaristas.
"Coragem para dizer a verdade": Raquitim recebeu a bola na área; deu um drible seco no beque, que chegou a cair e ficou por lá, desmoralizado na sintética. Depois, com a categoria de quem sabe das coisas, com um leve toque de canhota, Raquitim estufou o barbante. E só faltou ele ter ido pra galera, nas arquibancadas que nunca teve o Quadrãozão, porque o seu acanhamento o impediu.
Gol!...
iv -
Sempre houve, e não é de hoje, quem acompanhasse a trajetória dos inumeráveis Raquitim e por eles torcesse muito: coisa de sobrevivente. Em especial, de algumas Salomé, na juventude, e Madalenas arrependidas, agora em sua tão sofrida maturidade. Tanto-tanto que os aconselham e por eles oram. Às vezes, dá muito certo; às vezes, ou quase sempre, não. Nem sei se é uma questão de escolha. Talvez, de heroísmo essa raridade em dar certo, tendo tudo de errado vindo contra.
É que o Raquitim já nasceu perdendo. Mas, tinha tudo, menos, porém, o essencial para virar a tragédia do jogo, duríssimo, da vida: bola nos pés o tempo todo e, quando não, os olhos fitos nos lances em reprise na TV. Futebol na cabeça sete dias da semana e por vinte e quatro horas mesmo. E, sendo assim tão sonho, o viajar na maionese do Raquitim também nos acalentava. Brilhar na várzea; chegar às categorias de base de um dos grandes; ser a revelação do Mineiro; ascensão meteórica e sua fama ganhando o ardiloso mundo do futebol. E tudo isso, simplesmente es-tra-ça-lhan-do! Bagunçando mesmo as defesas, humilhando e destruindo o adversário. Aquele título tão esperado; as entrevistas nos programas esportivos; o topo; enfim, a glória!
Depois, era encerrar a carreira, num grande jogo de despedida; e na comunidade, continuar bancando alguma iniciativa na área social. Porém, o Raquitim, como naqueles tempos vários e hoje tantos, vinha de uma família muito pobre mas que viraria, Droga!, da pesada. E, assim, como os demais naquela casa, já não sobrevivia; vivia e bem, mas... do consumo.
Pô!
v -
Ele até que fez o caminho inicial da fama. Era esperado, natural mesmo, qualquer teste na várzea e ser logo aceito. E, ainda melhor, porque se tratava, simplesmente, de A Escolinha. Coisa de quem pode, subsidiada e administrada por olheiros dos grandes da Capital! Raquitim agora já não era figurinha carimbada das peladas do Quadrãozão; tava de frequentar a Zona Sul.
O início do fim foi ele, um camisa dez, nascido para ser o melhor do mundo, ter sido deslocado para a lateral. Esquerda. Pelo menos isso. Mas, Raquitim tinha um sonho. Por isso, até mesmo aquele tremendo vacilo dos cabeça-de-bagre dos treinadores, um dos altos preços que ele estava disposto a pagar. O futuro de quem não tem futuro é o que virá. O resto é só desacerto, se a gente não se acertar com Deus.
Flagrou?
vi -
Também era natural que Raquitim agradasse tanto, e fosse indicado de cara para a base de um clube profissional. Qualquer olheiro que só enxerga o talento nisso não falharia. Mas o drama de Raquitim, repeteco: começava em casa. Pois ele levava, é verdade, a vida num padrão muito acima do padrão das outras crianças daqueles aglomerados... Até já parecia que tinha nascido na Zona Sul.
vii -
Aconteceu de estar próximo o Regional, rural, dizem as más línguas. E a imprensa só pitaco da possível dispensa dos medalhões de O Cabuloso. Imperativo, pregava-se em todas as rodas sobre o mal momento do Rei de Copas. E daí, o aproveitamento, ainda que por experiência, dos meninos. Era a base, É nóis! E foi, então, que a lenda começou a tomar a dimensão do inimaginável...
viii -
Ninguém ainda tinha saído da estranha grama sintética do Quadrãozão e chegado a tanto. (Ah, a grama: implantada por uns políticos, em dias de voto de cabresto e super-faturamento, pagode e baile funk. Aglomerou!) Não, ninguém ainda a tanto se atrevera. E se atreveria? Quem, quem se atreverá? Raquitim, Véi, tava pra assinar o primeiro contrato como profissional!... Viram ele em ação e o foram buscar, mas, na várzea. Jogando, Cara, com a Dez! É que A escolinha não sabia mesmo valorizar o puro talento!
ix -
Parecia até ser um conto-de-fadas, não constasse dos lances recorrentes de uma tragédia de 500 anos. Porque viriam as baterias e mais baterias de exames... E o sangue de Raquitim deu: in-fes-ta-do!
Droga!
"Calou-se
a voz azul
da emoção.
Que dizer?" **
x -
Ah, se aquela casa tivesse permitido Jesus por sua porta entrar... Sarar todas as feridas, mudar toda a sua estrutura e, como o Salvador que é, redimir aquela história!... A história do Raquitim. Mas, não foi isso o que aconteceu.
Ah, se Raquitim tivesse sido mais atleta e menos talento!
Mais disciplina e menos naturalidade, improvisos. Descuido aqui, descuido ali, mais aquele vacilo de levar bagulho pra os filhinhos de papai da Zona Sul.
xi -
Última notícia de Raquitim, A Lenda: executado com trocentos tiros, após ouvir dos meliantes o famigerado "Aí, perdeu!".
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* Pro Lucas, filho do coração; para os sobreviventes e para Júlia Gardioli.
** Poema antecipando uma homenagem a O Locutor, quando de sua aposentadoria.
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